Conto: O sabor de ser

Meus olhos despertaram com os respingos de uma chuva que batia na janela. Ainda tinha uma Dido no Media Player e uma dor de cabeça que insistia em me acompanhar. Meus pés gelados procuraram um abrigo, e após não achá-lo levantei levemente sonolenta. O tempo estava nublado e por alguns segundos me peguei vidrada na manhã chuvosa que havia se formado lá fora, fios de chuva dançando torrencialmente.

Direcionei meu olhar para a cama desarrumada e nos meus sonhos dissolvidos, escorridos e encharcados no lençol. Foi como se eu tivesse passado um tempo trancada em uma caixa extremamente pequena lutando por cada golpe de ar. Antes que os pensamentos da noite anterior ressurgissem, calcei minhas botas esbranquiçadas pelo tempo e vesti meu casaco de lã por cima do pijama. Inalei naftalina. Evitei o meu olhar com o do espelho, pois tinha unido apenas o grosso do cabelo em um coque despencado e certamente encontraria um bocado de fios soltos e úmidos decorrentes da angústia da noite passada. 

Mergulhei meus dedos no pote de doces para visitas que estava na sala e apressadamente cacei duas gomas alaranjadas a fim de amenizar o hálito matinal e deixei nada mais que uma porta fechada para trás. Meus olhos apertados procuravam enxergar algo além de neblina e carros com vidros fechados.  Desemboquei em uma das ruas mais antigas do bairro e caminhei com os braços colados ao corpo gelado. E caminhei. Topei com uma amoreira vistosa e capturei algumas frutinhas, juntando-as na palma da mão.     

Percebi após experimentar uma, e cuspi-la logo depois, que as mais avermelhadas eram as mais azedas. E as arroxeadas eram as mais adocicadas sendo que a parte sucosa quase derretia na boca.  
Minhas pernas ainda caminhavam automaticamente enquanto avaliava meus dedos coloridos. A repentina curiosidade por aquela amora de cor vermelha, o alarme que parecia agitar meus pensamentos de que eu poderia ser o reflexo daquela pequena fruta. Minha mente invadida e marcada pelo temor de ser aquela amora azeda, aquela que era cuspida. Tentei limpar meus dedos e balancei a cabeça como se conseguisse expulsar a assombração daquelas ideias. 

Cheguei em casa e não consegui evitar, me encarei parcialmente no vidro da janela. A sombra do encontro com as amoras estampada nos meus olhos opacos. Os cabelos molhados, os lábios coloridos artificialmente, um aroma desconhecido de planta. Por um instante, divaguei sobre outros. Outras pessoas, outras frutas, outros sabores. Naquele momento, eu me via como azeda e indesejada e só esperava pelo momento em que seria capaz de trazer o adocicado comigo. Mas aquela graciosa e colorida amoreira não era feita de sabor doce ou sabor azedo. Ela era o que era porque continha os dois.

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